Em seu último livro "A Escola e os Desafios Contemporâneos” (2013), fala de como o ensino no Brasil está preso em uma estrutura ultrapassada, que trata o aluno como decorador de conteúdos. Na nova sociedade, o processo de aprendizado foi democratizado através da internet, com o conhecimento sendo produzido em tempo real.
Nos encontramos em seu escritório no Rio de Janeiro, num desses dias de calor esquentando a cabeça. Mesmo estando em uma sala climatizada pelo ar condicionado, o pensamento da Viviane fez a nossa cabeça ferver, entrar em ebulição. Além de educação, falamos também sobre política, sobre as manifestações ocorridas no país, literatura, e vida privada versus biografias não autorizadas.
Entrevistadores: Júlio Reis, Gabriel Pardal e Vitor Paiva
Produção: Vitor Paiva.
Transcrição: Júlio Reis, Gabriel Camões e Vitor Paiva.
Fotos: Camilo Lobo
PARDAL: Como ser poeta, filósofa e professora em um mundo que tira de você, o tempo todo, o ócio reflexivo?
VIVIANE: Esse
é o maior desafio. Meu maior sonho é comprar tempo. A gente acaba nesse
jogo, entende? Você ganha dinheiro para comprar tempo. Você ganha para
comprar ócio. E realmente isso é um inferno. Poesia, por exemplo. Eu
estou lançando um livro de poemas novo...
PARDAL: Que maravilha.
VIVIANE: Chama-se
“Calor”. São 100 poemas curtinhos. E eles são aqueles poemas
arrancados. Sabe quando você tem um cravo no rosto e que ele pula? Que
não cabe mais, que ele cresceu? É mais ou menos assim o meu poema.
Porque tem uma hora que ele não tem mais aonde ir. Aí, de repente, eu
sinto uma angústia, um incômodo, um mal estar enorme e quando vejo,
tenho um poema. A filosofia, quando comecei, estava muito próxima do
poema. Quando meu filho nasceu eu já tinha 40 anos. Nunca quis ser mãe.
Não tinha essa pretensão. Eu tinha que olhar pra cara daquele menino e
dizer: “é legal viver”, entende? Agora eu quero que o mundo seja um
lugar melhor. E minha filosofia virou muito política. Aí pensei: “o que é
que eu acho que muda o mundo?”. É essa porcaria de educação, que é a
responsável pela maioria das merdas que a gente tem. E aí, comecei a
fazer política. Então, isso me fortalece, sabe? Faço hoje política
educacional.
JÚLIO:
À propósito, você lançou o livro “A Escola e os Desafios
Contemporâneos” e está falando de seu filho. A educação não tem sido
usada como um pretexto, muitas vezes, para um tipo de persuasão dos pais
em torno de um projeto que eles vislumbram para os filhos?
VIVIANE: Sim,
você tem toda razão. E é justamente essa educação que coloco em
questão. Até a metade do século XX você tinha alguém que determinava o
que você deveria ser. Você podia seguir o estabelecido, que era a
igreja, alguns valores familiares ou do estado, ou ia contra isso. Então
tinha quem seguia e tinha os marginais. Sempre teve. Hoje, que o
contemporâneo arrancou a cabeça de todo mundo, ninguém no mundo tem como
seguir nada. Nenhum pai sabe o que fazer ou que projeto de vida ele
quer pro filho. Hoje a gente tem uma internet sem cabeça, com milhões e
milhões de cabeças funcionando. A gente tem essa ideia de que: “para ter
um país bom, elege um cara bom”. Não existe mais essa possibilidade!
Então, o que é educar hoje? Você só educa se, desde pequeno, exercita no
outro a autonomia e a responsabilidade. O que eu acredito é numa
educação que estimule a liberdade e a autonomia, mas que monitore –
especialmente se é criança – para que ela descubra os limites que ela
mesma tem que dar.
VITOR:
Recentemente saiu na imprensa a informação de que, dos 6 bilhões de
celulares que existem no mundo, 5 bilhões já foram monitorados de alguma
maneira. A gente sabe que existem umas três empresas que mandam em toda
a internet. Eu me pergunto: será que é tudo tão democrático assim? Ou é
só o mesmo modelo, mas com outro nome, com outra cara?
VIVIANE: É totalmente democrático, Vitor.
PARDAL: Mas temos ainda histórias como a dos celulares monitorados, ou da espionagem dos EUA no Brasil, no mundo...
VIVIANE: Sim,
há espionagem e é fato! Ninguém tem dúvida disto. O que acontece com a
vigilância, que é extremamente interessante em minha opinião, é que você
vai saber que não pode colocar a tua intimidade na rede, certo? Então,
onde é você vai colocar? Na tua casa, no seu espaço psíquico, que vai
voltar a crescer. A espionagem nos faz voltar para nós mesmos. Não
é no público que eu tenho que exercer a minha individualidade. É eu e
você batendo um papo. Bater papo vai valer uma fortuna (risos).
Agora, o fato de ter câmera na rua e de todo mundo ter um celular faz
você não maltratar uma criança, faz você não jogar o papel no chão.
Então, o espaço público, pelo monitoramento que vai ter, vai se tornar
um espaço ético! Porque se não, te pegam!
—
O que acontece com a vigilância que é extremamente interessante
em minha opinião é que você vai saber que não pode colocar a tua
intimidade na rede, certo? A espionagem nos faz voltar para nós
mesmos. É eu e você batendo um papo.
Bater papo vai valer uma fortuna!
—
VITOR: Mas isso aí é fronteiriço com aquela ideia do George Orwell (1903-1950) do controle absoluto, não acha?
VIVIANE: Só
que George Orwell já é muito antigo, muito velho, já morreu, acabou!
Ele não estava entendendo que a vigilância não vigia o teu pensamento e a
tua sensação, não é? Então, nós, que estávamos sem interioridade, vamos
descobrir na interioridade o melhor lugar do mundo. E aí, a poesia
nasce! Aí a filosofia retorna. Eu só enxergo benefício no que está
acontecendo. O que está acontecendo está arrebentando com as estruturas
pré-estabelecidas de poder. Esse senso de poder é que tem que
desaparecer. O poder fixo está caindo. O poder agora é totalmente mar. É
o seguinte: o poder é uma coisa que não se tem, se navega. A crise
ambiental é a melhor coisa que aconteceu no mundo. Eu amo o aquecimento
global! (Risos) O aquecimento global fez a gente acordar e dizer:
“estamos destruindo a natureza”. O aquecimento global tá mudando o
modelo de consumo, tá mudando o modelo de raciocínio, tá mudando a
relação com a natureza. Se não tivesse um aquecimento global, a gente ia
ter que inventar um, entendeu? Um boato aquecimento global!
VITOR: Tem gente inclusive que diz que é boato, simplesmente...
VIVIANE: É!
Tem gente que diz que é! Eu nem contesto se é ou não! Dane-se se existe
ou não, de fato! Eu vou continuar dizendo que ele existe porque isso
nos é muito útil.
PARDAL: Todo esse pensamento me leva a crer que você é uma otimista.
VIVIANE: Extremamente
otimista! Essa juventude é muito melhor do que a minha. “Ah, porque na
minha época”. Na minha época o quê? Na minha época nós éramos ou
marginais ou estabelecidos. Isso é horrível. Eu perdi muitos amigos
sendo marginais. Hoje, gente, por favor, a gente tem que ter clareza
disso: foi dado o instrumento pra quem quer agir, agir. Se a gente hoje,
com os instrumentos que a gente tem de ação pra juventude, puder
incentivar uma educação crítica, criativa, que incentive a autonomia, a
inventividade, a compreensão do processo social, cara, o mundo vai ser o
que a gente quer. Agora quem está fazendo o mundo somos nós. Em 2020,
2030, se o mundo estiver uma merda, é nossa responsabilidade.
VITOR:
Mas você está voltando sempre pra educação, e eu pergunto o que seria
essa educação crítica, revolucionária, vamos dizer, em termos práticos.
Dentro da escola, propriamente. Quais seriam essas diferenças?
VIVIANE:
Primeiro, a escola não pode mais ensinar. Ela só pode aprender. O que o
professor pode saber mais do que a internet? Nada. O aluno tem acesso à
internet, e o professor também tem. O aluno pode saber mais que o
professor, naquele aspecto. Então não existe mais uma escola de
transmissão de conteúdo. A escola passa a ser o lugar em que apenas se
desenvolvem métodos de pesquisa e ferramentas e aprende-se valores.
—
Se a gente hoje, com os instrumentos que a gente tem
de ação pra juventude, puder incentivar uma educação
crítica, criativa, que incentive a autonomia, o mundo vai
ser o que a gente quer. Agora quem está fazendo o mundo
somos nós. Em 2020, 2030, se o mundo estiver uma
merda, é nossa responsabilidade.
—
PARDAL: Debates, e tudo mais.
VIVIANE: Debates, escrita poética, prosa, escrita científica, desenvolvimento da oratória, da argumentação... Fora
isso, você tem que ter método de pesquisa. Como encontrar as melhores
fontes? Como distinguir uma fonte ruim de uma fonte boa? Como construir
uma argumentação? É isso que eu falei pra vocês sobre autonomia e
responsabilidade. A gente incentiva que as pessoas busquem. As escolas
tem que ensinar você a ser um cara que, com dezessete anos, se eu for te
entrevistar pra alguma coisa, você vai saber falar muito bem, se
expressar muito bem, defender suas opiniões muito bem, ter uma ótima
argumentação.
JULIO: Eu compreendo sua linha de raciocínio, mas eu queria te provocar aqui...
VIVIANE: Por favor.
JULIO: Do ponto de vista de um modelo macro econômico, com muitos oligopólios...
VIVIANE: Não tem modelo macro econômico, amor. Qual modelo macro econômico? Não tem mais...
JULIO: Há uma concentração de poder que talvez...
VIVIANE: Em quem?
JULIO:
Esses protestos que estão acontecendo no mundo todo, aqui no Brasil
desde a jornada de Junho, na Espanha, os Indignados...
VIVIANE:
Elas estão nas ruas, mas elas não leem jornal. Se as pessoas lessem
jornal elas não estavam naquela palhaçada. Me desculpa, elas não leem
jornal. Eu tenho vergonha das manifestações. As pessoas irem pra rua
contra o capitalismo e ainda quebrarem vidro de loja, achando que aquilo
ataca o capitalismo? Que falta de leitura! Essa é a parte da juventude
que me incomoda muito. Não existe oligopólio como as pessoas estão
falando. Ou existe, mas em franca decadência. Se você quer fazer
política, seja criativo, que aí sim você poderá estar destruindo uma
grande empresa. E não quebrando porta de banco. Quem paga as portas dos
bancos somos nós, os correntistas. O capitalismo está tirando as pessoas
da miséria, cara. Não é o marxismo que está tirando as pessoas da
miséria. Todo pobre hoje é um consumista em potencial. Ninguém tem
interesse em manter mais a miséria. Porque o Brasil cresceu. A Índia
cresceu? A China cresceu? Pelo número de pessoas que podem tirar da
miséria e consumir. Tirar as pessoas da miséria incentiva a indústria de
baixo pra cima, e é o que está acontecendo no Brasil. No futuro, a
exclusão vai continuar existindo, mas não será mais uma exclusão
econômica. Será uma exclusão intelectual. Quem não estiver no status da
intelectualidade é que vai ser descriminado. Uma boa parte da classe C
no Brasil saiu da miséria, isso é fato. Ainda é pobre, mas não é mais
miserável. Mas não deixou de ser excluída. O problema não é financeiro. A
classe C é tratada mal, não tem atendimento, não tem uma porrada de
coisas, mas tem dinheiro. Tem dinheiro pra comprar. O problema do mundo
não é mais a exclusão financeira, é a exclusão intelectual, e por isso a
educação é a grande mudança. Mas sabe qual é o meu grilo, que me
desespera? É que, com tudo isso, você vai pra rua levantar bandeirinha
anti capitalismo? Quem trouxe isso foi o capitalismo.
VITOR: É interessante isso, mas o capitalismo é isso também... Eu fui ` Nova Iorque recentemente, e olhando a cidade, pensei: cara, esse lugar é incrível, mas ele só existe às custas da África, por exemplo. O mundo inteiro não poderia ser assim. Não suportaria. Não é possível.
VIVIANE: Exatamente. É isso que tem que acabar.
—
Eu tenho vergonha das manifestações. As pessoas irem
pra rua contra o capitalismo e ainda quebrarem vidro de loja,
achando que aquilo ataca o capitalismo? Que falta de leitura!
Se você quer fazer política, seja criativo, que aí sim você
poderá estar destruindo uma grande empresa. E não quebrando
porta de banco. Quem paga as portas dos bancos somos nós.
—
VITOR: E essa é a minha questão. Esse capitalismo não é uma coisa que por princípio poderia ser para todos...
VIVIANE:
Nisso você tem razão, e isso é o capitalismo americano. É a cara do
antigo capitalismo. O capitalismo está se transformando. Ele era movido
por meia dúzia de CNPJs ou CPFs, e isso era o problema dele, a exclusão,
as oligarquias. Hoje o que move o capitalismo é uma coisa mais
orgânica. É muito mais disperso. A lógica do mercado, quando ela não é
controlada por meia dúzia de cabeças, ela é mais democrática do que
nossa boa vontade. Eu odeio boa vontade. Por exemplo, o que me incomoda
no marxismo... Sempre li o marxismo, mas o que o Deleuze diz? Acabou o
época dos sistemas. O que é o sistema? É Freud achar que descobriu o
inconsciente e agora ele responde tudo sobre o ser humano. Desculpe,
Freud, mas vá à merda. A mesma coisa o marxismo. Marx diz: eu entendi o
mundo, descobri o segredo e vou mudar o mundo! Desculpa, Marx, mas o
mundo não tem um segredo. São milhões de segredos. Nenhum ser humano é
capaz de propor uma coisa para o mundo. O mundo é muito grande pra uma
cabeça só.
VITOR: Mas o capitalismo não faz a mesma coisa?
VIVIANE:
Não, não existe “O” capitalismo. A gente fala “capitalismo” como se
existisse um sistema organizado por alguém. O que existe é o mercado.
VITOR: Mas justamente. O mercado também não faz isso, de se oferecer como uma única solução?
JULIO:
Isso me leva a outra questão que concatena com essa, que é o seguinte:
você diz que o saber é o fundamento do poder. Com isso você não está
excluindo outras formas de poder?
VIVIANE: Quais?
JULIO: Como a força, a inteligência, que não é exatamente saber...
VIVIANE:
Mas força é conceito. Ou tem força física, ou conceito. Ou eu te dou
uma porrada na cara, ou eu digo alguma coisa. A sociedade estrutura-se
na força e no valor. O que eu estou dizendo é que nós vivemos a
sociedade do conhecimento. Nosso tempo é o tempo do valor, e não da
força física.
VITOR: Na medida em que a força física é controlada pelas leis, você quer dizer?
VIVIANE: Exatamente. A força física é dominada pelo conceito. Então nós só temos conceito. Sempre foi assim.
JULIO:
Mas, por exemplo: embora você seja crítica dos protestos, se não
houvesse repressão aos protestos, nós estaríamos vivendo um outro quadro
aqui que só não está acontecendo porque...
VIVIANE:
Claro. Se não tivesse repressão aos protestos as pessoas não teriam
motivo. As pessoas vão pra rua sem nenhuma direção. Ai fica assim: "Vem
também! Vem também!" Peraí. Vem também? Qualquer um? Você está chamando
os neo-nazistas pra andar com você?
VITOR: É, isso foi uma crise óbvia dos protestos.
VIVIANE:
Você quer chamar os pedófilos? Os filhos da puta? Eu não vou pra rua
pra chamar todo mundo, porque eu não sou a favor de todo mundo. “Venham
todos pra rua”? Esse todo não me interessa. Eu sou a favor de política,
de mudar o mundo, de transformar as instituições, mas não é este o
caminho. Dali, daquelas manifestações, não surgiu, por exemplo, uma
reforma política. As pessoas querem ir contra a polícia? É só isso?
Desmilitarizar a polícia? Mas não se manifestaram a favor de uma reforma
política? A nossa política é defender a rede. A liberdade e a autonomia
dela. Quer fazer uma política boa? Defenda a internet, com sua
liberdade e autonomia.
VITOR: Agora, por outro lado, a internet nos isola um do outro fisicamente, presencialmente.
VIVIANE: Felizmente, né? Ainda bem! (risos). Porra, vai ficar convivendo, convivendo, convivendo? (risos). Cadê a poesia?
VITOR: Ué, mas a poesia também é isso. E o sexo?
VIVIANE:
Tem que ter solidão. Tem que resgatar a solidão, por favor! Eu adoro o
isolamento, eu não saio de casa pra nada, não tenho nada pra fazer na
rua. Eu acho que o século XX foi o século da convivência. As pessoas se
prostituíam por qualquer coisa só pra conviver. Isso é uma merda, cara. A
autonomia vem da solidão. Quem não sabe lidar com a solidão está
fodido. Eu não acho um problema se isolar. A culpa não é da internet. E a
internet está levando as pessoas pra rua. Não foi isso que aconteceu
nas manifestações? A melhor coisa do mundo foi a gente descobrir que
basta ter uma vontade que a gente aciona um milhão de pessoas. Agora, da
próxima vez, que a gente acione contra uma coisa específica. O que
aconteceu ali foi um sistema de comunicação novo, democrático e maduro
sendo usado por pessoas sem capacidade de utiliza-lo. O mundo todo hoje
sobra de imaturidade política e alto uso tecnológico. Esse é o abismo.
Por isso que educação é a questão.
—
Tem que ter solidão. Tem que resgatar a solidão, por favor!
Eu acho que o século XX foi o século da convivência. As
pessoas se prostituíam por qualquer coisa só pra conviver.
—
VITOR: E o mal aluno?
VIVIANE: Nós temos que respeitar quem não quer estudar. A escola não faz isso.
VITOR: Esse
mal aluno, por sua força imprevisível e questionadora, não deveria ser
justamente alguém a se olhar com um interesse especial?
VIVIANE: Mas
hoje ele toma Ritalina. É esse exatamente que toma Ritalina. Primeiro,
tem um mal aluno, preguiçoso, que odeia estudar, mas pode ser um
excepcional profissional em várias áreas. Não é pra tudo que se precisa
de formação intelectual, pelo menos não uma formação careta. Segundo, se
a minha escola não tem um modelo, se ela atende a demanda das
individualidades, e você quer ser um líder, eu não vou cobrar de você
biologia e química. Isso é permitido oficialmente, o governo federal
permite isso.
PARDAL: Era
esse meu problema, eu detestava Física e queria estudar Culinária na
escola para poder cozinhar, que era algo mais importante do que Física
para mim.
VIVIANE: Essa
é a minha defesa. Tem que haver uma revolução no Brasil no ensino
médio. Nas alçadas do governo mesmo. Mudar o modelo. Já está permitida a
mudança, mas as escolas não estão tendo coragem, acham que não pode.
PARDAL:
Assim como nos anos 90 era imprescindível estudar inglês, a partir de
agora continua sendo imprescindível estudar inglês, mas também aprender a
fazer um website, uma página na internet, entender de codificação.
VIVIANE: É outro tipo de educação. Por que é que hoje você vai estudar biologia e não estudar web design?
VITOR: A escola que você “prevê” é uma escola ainda segmentada por matérias?
VIVIANE: Não. A escola do futuro terá os mesmos eixos do Enem: linguagens, humanas, compreende?
JÚLIO: A criança não vai parar duas horas para estudar exclusivamente matemática, por exemplo?
VIVIANE: Não.
São projetos de pesquisa. Por exemplo, isso já acontece na escola da
Ponte e na Amorim Lima. É assim: você tem 10 anos de idade, entrou na
sala de aula hoje e eu, professor, digo para os meus alunos o seguinte:
nós temos até o meio do ano para desenvolver isto, isto e isto, e listo
os conteúdos. Alguém fala: eu quero começar por esse tal. Cada um
escolhe. Pelo tema você vai desenvolver um projeto. Eu dou uma, duas
semanas para ele e vou acompanhando. Daqui a duas semanas ele diz para
mim: quero começar por biologia, mas quero começar pelo coração, porque
tenho um problema de coração, fui no médico, me interessa. No final ele
constrói esse projeto. O professor então pergunta quem mais quer corpo
humano. Junta todo o corpo humano. Coração pra cá, fígado para lá e cada
um desenvolve seu projeto, sem aula.
VITOR: Separadas em classes?
VIVIANE: Sem classes. Veja o exemplo da escola da Ponte, que está há 40 anos assim. Inclusive
não se reprova. É divido por grupos, mas não são salas. Olha só como
funciona essa escola da Ponte (em Portugal) e a Amorim Lima em São
Paulo. No andar de baixo você tem salas, no de cima nenhuma. No primeiro
período você divide os alunos por turma, de modo que na primeira parte
se distribuem tarefas, se discute os assuntos, não há aulas, os
professores não dão aula na escola da Ponte. No segundo semestre todos
os alunos vão para o segundo andar e estudam uns com os outros. O mais
velho com o mais novo. Eles põem os grupos em um mural. Grupo do corpo
humano do oitavo ano, do nono ano, cada um tem um grupo. Isso já é assim
há 40 anos, forma os principais intelectuais e tem a melhor nota do
Ideb de Portugal.
VITOR: O estudo pela memória está finalmente falido?
VIVIANE: Totalmente falido. Não faz sentido as nossas escolas de ensino médio hoje ficar mandando os alunos decorarem cadeia de carbono.
PARDAL: E o que faz o professor? Ele continua tirando dúvidas, auxiliando?
VIVIANE: O professor é chamado de gestor de conteúdo e conhecimento. Ele
tira dúvidas e até dá aula se for preciso, se vários alunos estão com a
mesma dúvida então reúnem-se todos e ele dá uma aula sobre aquilo
pedido pelos alunos. O que é o professor então? Ele é um orientador da
pesquisa especialmente em métodos.
—
Só existe inteligência emocional, não
existe outra. A única maneira de ser inteligente
é quando seu coração é colocado lá.
—
JÚLIO: E
onde fica a questão do afeto no conhecimento? Até que ponto o
conhecimento para constituir uma sociedade mais ética e democrática
passa pelo sentimento?
VIVIANE: É
que não existe uma separação entre entendimento e sentimento. Em meu
livro “O homem que sabe” eu defendo a tese de que nós saímos do modelo
de raciocínio em linha, para o modelo em rede. Não existe bonito e feio.
Não existe certo e errado. Existe rede de tensões em todos os lados.
Não se opõem valores. Por exemplo, tem gente que fala sobre a
inteligência emocional. Eu morro de rir. Só existe inteligência
emocional, não existe outra. A única maneira de ser inteligente é quando
seu coração é colocado lá. Então como é que você faz para provocar um
aluno a querer apreender? O professor tem que provocar o vazio no garoto
de sete anos, para que esse garoto queira preencher esse vazio com
pesquisa. O que é o vazio senão o afeto? O aluno vai querer aprender o
que tem a ver com afeto. Você só aprende o que você já sabe, essa é a
única realidade. A gente só busca o que já está na gente. O afeto é a
razão de ser da vida. Então temos que juntar afeto e conceito num modo
só.
VITOR: Você
criticou a regulação do segredo do Freud ou do Marx e tal. Você não
estaria fazendo a mesma coisa ao dizer: “a relação piramidal acabou e
agora é isso”, como sendo uma nova verdade. Dizer isso não é uma maneira
na verdade de se frustar amanhã?
VIVIANE: É
manter o jogo. Até vir outro e me destruir, faz parte, não é um
problema. Eu estou tentando ler o mundo – eu não tenho uma teoria minha –
o que tento fazer é dizer: “olha só o que está acontecendo”. A minha
proposta é pensar e não repetir. Ao pensar eu estou dando a chance de
você fazer uma tese contrária a minha. Eu vou adorar. É uma maneira de
provocar, isso eu acho que é o novo conceito: não produzir verdade. Não
tem verdade no que estou falando, tem provocação.
JULIO: Dentro desses tópicos, de conhecimento, informação, como é que você vê a questão da propriedade intelectual?
VITOR: Mas então como é o que o compositor, por exemplo, ganha dinheiro?
VIVIANE:
Olha só como acontece hoje: eu, por exemplo, sou altamente consumidora
de música pela internet. Todas pagas. Não tenho nada que seja pirata,
porque pago 99 centavos de dólar por uma música que escolho. Nós não
vamos perder essa noção, de ter um retorno. Agora, o direito intelectual
nunca foi nosso. Nunca foi. Você faz um livro e vende um milhão de
livros, mas vão dizer pra você que vendeu quinhentos.
VITOR:
De tudo que você está falando, a diferença não parece ser entre um
mundo que havia e que agora não há mais. É mais entre um mundo que já
não havia e que a gente achava que havia, ou que gostava de achar que
havia.
VIVIANE: Exatamente. É exatamente isso. Ele já não havia.
PARDAL:
Você acha que o cenário artístico contemporâneo está distanciado,
desconectado das verdadeiras questões filosóficas atuais? De tudo que
falamos, onde é que entra o artista?
VIVIANE:
Eu acho que a cultura é quem está mais deplorável no mundo. Os artistas
estão desnorteados. Eles estão engolidos pelos meios, não estão
entendendo. Eu não estou vendo os artistas se colocarem no mundo. Porque
a cultura e a arte são o fundamento desse empoderamento intelectual. O
que nos forma é a cultura. Quem forma a inteligência do brasileiro?
Então, é a cultura que tem que puxar esse processo da educação.
A cultura é a liga que falta, entende? É quem vai trazer educação. O
maior investimento que eu faria se fosse presidente do Brasil – eu nunca
seria, nem pelo fim do mundo, eu ocuparia um cargo desses, nem prefeito
nem nada, jamais, em nenhuma hipótese (risos). Mas, supondo que eu
estivesse nesse lugar, o meu investimento número um seria em cultura.
—
Eu acho que a cultura é quem está mais deplorável
no mundo. Os artistas estão desnorteados. Eles estão
engolidos pelos meios, não estão entendendo. Eu não
estou vendo os artistas se colocarem no mundo.
—
VITOR:
Mas ai você não está fazendo uma espécie de curadoria, dizendo que uma
coisa é boa, válida, e outra não? Em termos de produção artística, por
exemplo? Porque a verdade é que ouve-se muita música. Com isso, não se
está dizendo: ouça Cartola, e não, sei lá, Luan Santana?
VIVIANE:
Não, não, porque a escola boa não tem muro. Você não estuda na escola,
você estuda no teatro. Não é que a escola vá ensinar você a ouvir
música. Você tem aula lá no teatro. É assim que as escolas boas fazem.
VITOR: Sim, mas que peça ela vai assistir? A do ator dA Globo ou Beckett?
VIVIANE:
Isso vai depender da discussão da própria escola. Ai que vem a
comunidade. Ai vem a participação sua, que tem dezoito anos, naquela
comunidade.
CAMILO: O pensamento crítico nasce sozinho.
VIVIANE:
Entendeu? Sozinho! Eu sou contra liderança. É o que mais gostei das
manifestações. Não ter liderança! Mas não ter liderança não quer dizer
não ter direcionamento.
VITOR:
É claro que concordo com isso, mas talvez eu ache idealizado na medida
em que a gente vive, ou viveu, até a internet, num mundo com lideranças e
com interesses velados. Me angustia olhar a internet e pensar que ela é
um veículo impressionante, mas no qual noventa por cento do que se vê é
vazio, não é nada, não diz nada.
VIVIANE: Mas isso é o quê? Educação. Estamos concordando. Nós temos o suporte, mas não temos conceito.
VITOR: Sim, mas então tem uma curadoria. Tem alguém dizendo que isso é bom e aquilo é ruim.
VIVIANE:
Claro. A curadora vai sempre existir. Eu faço um livro, e você é
contra. Mas ai outra pessoa diz que ir contra meu livro é um absurdo.
Uma semana nós vamos com um, outra com outra. Uma semana é com o Luan
Santana, a outra...
VITOR: Mas e o mundo em que a maioria é homofóbica e acha que negro não tem que ter espaço, e acha que...
VIVIANE:
Mas isso é consequência de uma educação piramidal, que é o que nós
falamos lá atrás, do capitalismo. Nós fomos formados, até hoje, a ter
preconceito, a não aceitar a diferença, a dizer que o bonito é quem tem o
cabelo liso, é branco, alto e magro. Isso é consequência de uma
educação capitalista dirigida.
VITOR: Pois é. Hoje, uma eleição na internet, provavelmente proibiria a relação homossexual.
VIVIANE:
Hoje a internet é fascista. Todo mundo diz a mesma coisa. O fascismo
não é te proibir de dizer. É te obrigar a dizer. A internet hoje é
fascista, porque ela te obriga a dizer. Por exemplo, a discussão das
biografias é uma discussão muito legal e não essa merda que fizeram. Se
você é contra a biografia não autorizada, como eu sou contra, você é
destruído. Você é tratado que nem cachorro e lixo. Não se mexe na vida
particular... Que que é isso? Quer falar da minha vida pública? À
vontade. Agora, com quem eu vou pra cama, como é que eu trato meu filho,
é problema meu.
VITOR: Eu sou a favor das biografias não autorizadas, mas concordo que o importante é poder discutir isso.
VIVIANE:
Isso! E ninguém discutiu! Só tem espaço pra falar mal. Eu fui defender
isso na (rádio) CBN e fui apedrejada! Eu sou contra! Eu sou a favor do
Roberto Carlos e do Caetano Veloso! Você leva pedrada!
JULIO:
Mas a questão pra mim é a seguinte: você é contra as biografias não
autorizadas. Eu sou a favor. O que não quer dizer que eu seja a favor de
qualquer coisa que a pessoa escreva. Não é bem assim a questão.
VIVIANE: Claro que é.
JULIO: Não necessariamente.
VIVIANE: Claro. Porque primeiro ela vai publicar e depois eu vou reclamar?
VITOR: É.
VIVIANE:
Como assim? Depois que você postou na internet que eu sou fascista, e
provou, porque tudo se prova, né? Você prova. “Está aqui. Conversei com a
empregada dela, conversei com o filho”. Ai alguém lê e tem certeza.
“Ela é fascista mesmo! A empregada falou” (risos).
VITOR: Mas qual é a fronteira entre a vida pública e a vida privada?
VIVIANE:
Não acho que a gente tenha que proibir necessariamente que uma coisa
saia. Mas a gente tem que discutir o valor que se dá a vida privada
hoje.
VITOR: Sim, isso eu concordo.
VIVIANE:
Lembra que eu falei que a gente vai voltar pra dentro? Eu sou a favor
da vida privada. Do resgate da vida privada. Hoje, por causa da
internet, e esse é um lado ruim, parece que toda nossa vida tem que
estar lá. Tudo que eu posto na internet é público, para todos. Eu sei
como aquilo ali funciona. Agora, eu não apareço na Caras, e já me
convidaram várias vezes. Não vou no Faustão, e já me convidaram várias
vezes. Não tenho interesse nenhum e não vou à festas de celebridades.
Não faço palhaçada na rua, como especialmente o Chico Buarque não faz.
Ai, alguém tem direito, porque gosta de mim, vai com a minha cara, de
entrevistar uma ex empregada? Quem disse que o que ela falar tem a ver
com o que você está vivendo? E vira verdade. Até eu conseguir provar que
aquilo é uma difamação... Nunca mais eu consigo desfazer.
JULIO: Isso vem acontecendo desde a pré-história.
VIVIANE:
Então. É por isso que eu sou a favor da regulamentação. Da vigilância.
Alguém vai sempre poder roubar a sua casa. Mas você tem o direito de
fechar a porta. Acho até que podia liberar as biografias, sinceramente.
Não acho que tenha que proibir. Mas a gente deveria ter tido uma longa
discussão sobre o perigo das nossas revistas Caras.
JULIO:
Mas isso não é supor também que todo mundo está desavisado, que todo
mundo que está lendo isso está achando que é verdade?
VIVIANE:
A argumentação prova o que quiser. Eu, Viviane, inteligente, esperta,
vou ler e vou concordar. Argumentação e nada é a mesma coisa. Outra
coisa: a liberdade de expressão. Vai dizer pra mim que existe liberdade
de expressão no mundo? Tem censura pra tudo. Então vem dizer pra mim que
a história das biografias é censura? Não há liberdade de expressão. A
rede não é lugar pra você ter a sua intimidade.
VITOR:
Mas o que eu acho irônico é que a gente sabe que a Caras ou qualquer
uma dessas revistas é, na verdade, uma grande peça publicitária – até
porque aquilo sim é chapa branca.
VIVIANE: É, totalmente...
VITOR:
Eu acho a Caras uma coisa horrorosa, e acho irônico que ali se devasse
uma vida privada – inventada, claro, de roupão, no hotel – mas de forma
completamente escancarada, de porta aberta, tirando foto no banheiro. Me
estimulam a querer ver a vida do artista, porque é óbvio que ele é um
cara interessante, e quando eu continuo querendo, se fala: “não, não
agora, chega...”.
VIVIANE:
É isso que eu concordo. Por isso que, na minha questão, a discussão
seria essa invasão da vida privada, e não a biografia. Por que o Brasil
tem essa obsessão? Eu
detesto biografia. Eu nunca li nem a biografia do Nietzsche. Odeio
biografia. Não faz diferença quem foi o Nietzsche de fato. Faz diferença
o que o cara fez. A gente tem que parar de valorizar pessoas, e passar a
valorizar suas produções.
PARDAL: Qual é questão do filósofo hoje? O que ele se pergunta, ou o que ele deveria se perguntar?
VIVIANE:
Depende do tipo de filosofia. Tem sempre um ponto em que você toca,
naquele momento, que pode ser fundamental pra uma transformação. E cada
hora é um ponto. A questão do pensamento hoje, especialmente o político,
é você conseguir pescar o eixo da transformação, e poder incentivar. Eu
acho que esse eixo é a educação. Desconstruir o processo educativo, do
ensino infantil à universidade.
VITOR: Fazer, como a internet fez com o mundo, na educação. Um novo marco zero.
VIVIANE: Exatamente. A democratização do conteúdo muda a relação de poder no mundo. Essa é a minha tese. Não
voto há mais de trinta anos. Quer fazer política? Dane-se quem vai ser
eleito. Vamos criar instâncias de vigilância de baixo pra cima. Ai os
caras vão fazer o que a gente quer.
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